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Cidade da ´caridade e liberdade` para quem?

As fotos mostram o Dique da Vila Gilda, na Zona Noroeste, onde milhares de pessoas vivem em precárias moradias sobre palafitas. (Fotos extraídas do portal da Prefeitura de Santos)

Santos é a cidade que exalta o lema da ‘Caridade e Liberdade’. Destaca, frequentemente, seus ‘heróis’: grandes investidores portuários e ferroviários, astutos comerciantes do café, imigrantes europeus que trouxeram sua força de trabalho. Heróis brancos, eleitos como arautos do progresso. No rodapé desse discurso, costuma-se lembrar da luta pela abolição com frases de efeito, sem muito esforço de reflexão. Jamais se esquece de enfatizar a existência de abnegados abolicionistas, destacando a ´benevolência` da elite. Para não ficar totalmente fora do tom, citam conhecidos líderes negros, normalmente Quintino de Lacerda e Zumbi dos Palmares, mas sem ir além das citações. Sim, claro, há honrarias oficiais, mas que não chegam a refletir passado ou presente. São um exemplo clássico de como apagar protagonismos de negras e negros.

Fala-se de uma antecipada abolição (que não ocorreu) sem tocar no passado de escravidão, como se nenhuma relação houvesse entre uma e outra. Exalta-se o veloz desenvolvimento urbano que vem a bordo dos trens da São Paulo Railway, inaugurada em 1867. Navega-se na exportação do café e na modernização portuária. Porém, a contribuição dos indígenas e negros/negras escravizados/as é esquecida. Foi o trabalho forçado que, desde o as primeiras décadas da colonização (no século XVI), garantiu a produção de toda a riqueza desse território que viria a se chamar Santos, dessa nação chamada Brasil.

Negros e negras – os sequestrados no continente africano e os nascidos nesse território (crioulos) – atuaram no cultivo da cana, produção e carregamento do arroz, do açúcar, do café e de outras tantas mercadorias. Subiam e desciam a Serra do Mar com cargas, puxavam as carroças carregadas de produtos, levavam nas costas até barris de excrementos dos seus senhores (os denominados ´tigres`). E fizeram muito mais. Para além da força física, contribuíram com o poder dos seus conhecimentos sobre metalurgia, técnicas de plantio, cuidados com a floresta, com seus cantos, batuques, danças, capoeiras, culinária, celebrações e narrativas.

Na cidade da ´Caridade e Liberdade`, como em todo o território brasileiro, negras e negros sempre lutaram (ainda lutam) pela liberdade e o direito de serem cidadãos. Contaram, sim, com apoio de abolicionistas da elite branca – alguns por benevolência, outros por interesse comercial e político. Porém, a complexidade do sistema escravista e as diferentes dinâmicas sociais que nele se originam não nos permitem falar de apenas um Movimento Abolicionista. É preciso mostrar o protagonismo de negras e negros nessa luta. Refletir sobre as consequências do fato de, logo após os dias de festa em comemoração à Lei Áurea (1888) e com o advento da Proclamação da República (1889), os libertos foram abandonados à própria sorte pelos ´abnegados` senhores e senhoras da sociedade ´civilizada`. Muitos saíram da escravidão para a marginalização e para a margem do mercado de trabalho (mão de obra barata, classificada como ´desqualificada`). Passaram, então, a ser perseguidos pela polícia: batuqueiros, sambistas, capoeiras e ‘vadios’ – aqueles sem casa e trabalho.

Autora do livro ´Uma Cidade na Transição – Santos: 1870-1913` (1996), Ana Lúcia Duarte Lanna afirma que Santos “se faz na transição da escravidão para o trabalho livre”, um período de muitas mudanças sociais, epidemias e transformações urbanas: “O crescimento urbano foi caracterizado pela edificação de belas casas e palacetes, pela negação do sobrado colonial e das formas de vida nele estabelecidas, pela construção de novos espaços e forma de lazer, pelo aparecimento de lojas, cafés, restaurantes, teatros e parques. Mas foi, ao mesmo tempo, caracterizado pelo aparecimento de cortiços, de bairros populares, de trabalhadores ditos ‘arruaceiros’, ‘incivilizados’, ‘vagabundos’ que com sua presença e movimento também marcaram as novas cidades”, escreve.

Essas transformações demonstram como a reordenação dos espaços públicos e privados promovem a segregação social, ao mesmo tempo em que criam no imaginário um padrão do que se define como progresso e a quem ele se destina. Sem trabalho e moradia, a população negra liberta se viu na rua e logo foi criminalizada por ‘vadiagem’ e arruaças. Muitas mulheres e homens retornaram às fazendas do interior como mão de obra barata. Houve os que se efetivaram nas atividades portuárias, disputando postos de trabalho com europeus que vinham para o Brasil estimulados por políticas de imigração, incentivados pelos seus respectivos governos e por ricos senhores locais. Em muitos casos esses imigrantes recebiam até oferta de terra para recomeçarem a vida.

No Brasil, a Lei Áurea oficializa o fim da escravidão sem qualquer apoio a libertas e libertos. Nunca houve interesse na alfabetização de escravizadas e escravizados, assim como não se levou adiante a discussão sobre a distribuição de terras ou indenizações pelo trabalho forçado. Ao contrário, escravocratas tentaram usar todo o seu poder político, em diferentes esferas, para reivindicar compensação em razão de uma pretensa liberdade ´concedida’.

Não por acaso, muitas ex-escravas e ex-escravos utilizados nas atividades domésticas não vislumbraram alternativa a não ser permanecer trabalhando nas residências de seus antigos senhores, recebendo pequenas quantias. Não é ‘coisa do destino’ o fato de, ainda hoje, existirem famílias negras nas quais, por várias gerações, o sustento vem do trabalho como faxineira e/ou diarista, do serviço como porteiro, limpezas gerais, jardineiro… Nenhum demérito a essas profissões. O que se pretende é mostrar que, mesmo considerados livres, era difícil projetarem vida melhor e até mesmo se imaginar para além do universo do trabalho forçado. A quebra dessa sequência exige a implantação de políticas públicas (saúde, habitação, educação, qualificação profissional, geração de emprego e programas sociais) e a consolidação de ações afirmativas. É uma luta contra a naturalização da ideia de ´cidadão de segunda classe`, contra o preconceito e por respeito. Luta que não cessa.

Trata-se de um sistema solidificado por séculos de exclusão e silenciamento, um sistema capaz de criar – e recriar – formas de dissimular essas práticas e de fazê-las fruto da nossa ‘cordialidade’. Uma espécie de atualização sistemática do imaginário da ‘democracia racial’ e da ‘hierarquia natural’ das raças. O apagamento da memória da população negra faz parte da política de construção da nação. É essa a prática que deve ser combatida.

Texto: Marcos Augusto Ferreira – produzido a partir da pesquisa ´Memórias Apagadas da Terra da Liberdade`, desenvolvida como parte do Projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras.