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Ideias de “branqueamento” estão na origem da nação

As ideias de fundação da nação Brasil miram-se no modelo europeu, branco e considerado ‘civilizado’. No desenho imaginário dessa nação, fazia-se até previsão de que em três gerações o Brasil seria um país majoritariamente de brancos. A meta seria alcançada pela entrada de imigrantes europeus e pelo efeito da biologia (a ´superioridade` do branco sobre as demais raças).

“O Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”, escreveu João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na tese apresentada por ele no I Congresso Internacional das Raças, em 1911, em Londres. Em francês, o ensaio tinha o título ´Sur les métis au Brésil` (´Sobre os mestiços do Brasil`) e o autor citava diagramas para propagandear que, em cem anos, “a população do Brasil será completa” de: 80% brancos, 17% indígenas, apenas 3% de “mestiços negroides” e mais nenhum negro.

Esse é apenas um episódio sobre a ideia do branqueamento rumo a um Brasil ´europeu` e que é abordado no livro ´O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930`, de Lilia Moritz Schwarcz (1993). Para muitos intelectuais do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, mestiçagem era sinônimo de degeneração social.

Na essência do discurso modernizador, o branco europeu prevaleceria até o Brasil se tornar, por inteiro, uma nação europeizada. Para alcançar tal objetivo, no entanto, não seria possível percorrer a trilha do eugenismo, a ideia da ´raça perfeita`, algo que fora impossibilitado pela própria dinâmica da colonização: paradoxalmente, a construção do que se pretendia ser a terra civilizada (branca) baseou-se na dependência da mão de obra vista como ´selvagem` e ´incivilizada` dos indígenas e dos negros e negras. Nesse aspecto, o processo de colonização e a travessia do Atlântico pelos navios negreiros acabou por promover o encontro (nem sempre amigável, claro) de diferentes povos, inclusive de diferentes etnias do próprio continente africano que para cá vieram.

Desde os primórdios da colonização, a miscigenação já se mostrava um fato. A forma encontrada, então, foi disseminar a ideia principal do ´branqueamento` com base justamente na tese da ´mistura` dos povos, estruturando-a com base em suposta ´hierarquia natural` existente entre eles. O que se desejou – e ainda há quem cultive tal desejo – foi promover o imaginário da miscigenação como sinônimo de ‘democracia racial’, na qual a superioridade do branco seria sempre (e cada vez mais) evidente.

Reprodução de página do livro ´O espetáculo das raças`.

Cuidado com a armadilha: aqui não se rejeita, nem se ignora, a importância da diversidade dos encontros. Os entrelaçamentos entre diferentes povos são aspectos fundamentais para a nacionalidade brasileira. Porém, é preciso estar atento ao mau uso dessa tão difundida ‘mistura de raças’. Intelectuais brasileiros no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, entre eles Sílvio Romero, Oliveira Viana e Artur Ramos, com algumas variações e adaptações, seguem o raciocínio do naturalista Karl von Martius (1794-1868) e sua metáfora dos três rios, como narra Lilia Schwarcz, em outro livro, ´Sobre o Autoritarismo Brasileiro` (2020): “três longos rios resumiriam a nação: um grande e caudaloso, formado pelas populações brancas; outro um pouco menor, nutrido pelos indígenas; e ainda outro, mais diminuto, alimentado pelos negros.”

Daí surge a tese do país miscigenado como símbolo da cordialidade. O raciocínio sustenta o discurso das ‘três raças fundadoras’ do Brasil com base em ‘harmoniosa hierarquia’, na qual o negro é exaltado pela sua obediência e força, jamais pelo conhecimento e protagonismo. Por esse motivo, vale reforçar o alerta para se evitar a armadilha: miscigenação, por si só, não significa igualdade de direitos ou equidade social, muito menos racial.

Encarar e desconstruir essa cruel receita civilizacional é imprescindível para entender o Brasil de hoje, onde a institucionalização do preconceito e do racismo atravessa todos os níveis sociais e de poder. Permanece a insistência em relegar ao negro a ‘cidadania de segunda classe’. Mas o tal ‘rio diminuto’ foi sempre oceano, um mar aberto tão pacífico quanto revoltoso, rio de fortes correntezas conquistando espaço por onde quer que passe.

Texto: Marcos Augusto Ferreira – produzido a partir da pesquisa ´Memórias Apagadas da Terra da Liberdade`, desenvolvida como parte do Projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras.