O vilarejo do Cubatão e os caminhos do ´desenvolvimento`
Até o século XX, quando nos referimos a Santos, o território inclui os atuais municípios de Cubatão, Guarujá e Bertioga. Considerando que alcançar o planalto, ‘vencer a muralha’ da Serra do Mar, foi desde muito cedo essencial para o desenvolvimento da região, a área no sopé e no alto da Serra do Cubatão guarda fatos fundamentais para a história da população negra. Naquela região, por exemplo, se instalou o Quilombo do Pai Felipe que, somente nos anos 1880, após sofrer vários ataques, migrou para a área urbana de Santos.
A população negra que vivia no Vilarejo do Cubatão era composta por pescadores, tropeiros, barqueiros e carregadores de carga. Cabe esclarecer que até a passagem do século XVIII para o XIX, mesmo após a construção da Calçada do Lorena, a ligação do porto com aquela região era feita pelos rios. Toda mercadoria que descia ou subia a serra tinha que parar em Cubatão. Do porto até ali, ou dali até o porto, era transportada em canoas, até a praia no Valongo, chamada de Porto das Canoas – ali não havia profundidade nem condições para a atracação de navios, o que ocorria poucos metros à frente.
As melhorias implementadas nesses caminhos ligando Santos, Cubatão e São Paulo (capital e fazendas do interior) impulsionaram o crescimento econômico e a atividade portuária. No século XVII, a Coroa já estimulava o comércio de trigo, sal e de outros produtos. Vale lembrar que a cidade de Santos se restringia a uma pequena área entre o Outeiro de Santa Catarina e o complexo religioso do Valongo. Há historiadores que dizem que não existiam mais do que 30 ruas nesse território. Uma época em que rios e ribeirões desciam do Monte Serrat e do Morro do São Bento para desaguar nas praias, que se confundem com o pequeno porto de pontes e trapiches, local de armazenagens de cargas.
São caminhos que escondem as pegadas de escravizadas e escravizados, tanto indígenas quanto africanos e crioulos (nascidos em território brasileiro). Pegadas deixadas pelo peso das cargas ou dos grilhões de ferro: muitas negras e negros desembarcados em Santos eram acorrentados e subiam a pé para São Paulo, de onde seguiam para fazendas no interior ou mesmo para as áreas auríferas em Goiás e Minas Gerais, dependendo do período.
Em meados do século XVIII, a produção de açúcar no interior de São Paulo começa a exigir cada vez mais investimentos nesses acessos, o que incluía mais mão de obra escrava. O então governador Morgado do Matheus, em 1765, adota medidas que transformam Santos em ´Porto Único`: todas as mercadorias cuja origem ou destino fossem os demais portos da Capitania de São Paulo – como Cananéia, Iguape, São Sebastião, Ubatuba, assim como aqueles do atual estado do Paraná – deveriam passar pelo Porto de Santos. Daqui sairiam, após pagarem as devidas taxas. Esse privilégio abarcava o comércio do trigo, do sal e do arroz, entre outros produtos.
Vale ressaltar que os engenhos tiveram curta duração na Ilha de São Vicente e, nas poucas fazendas existentes, a produção é pequena. Assim, tanto Santos, em função do porto, quanto São Paulo, por promover a intermediação comercial com o interior, desenvolvem características comerciais. O governador ordena, então, melhorias no caminho da serra, para possibilitar o transporte de mercadorias por ‘carros’ puxados por mulas, sem abrir mão da escravaria.
No entanto, é Bernardo de Lorena, sucessor de Morgado do Matheus, que irá promover os mais impactantes investimentos no acesso ao planalto ao mandar construir o caminho que ficou conhecido como a Calçada do Lorena – isso por volta de 1790. A medida intensifica, principalmente, o comércio açucareiro, mas já contribui para o início das exportações de café a partir do século XVIII. O açúcar adoça o caminho para o que será a grande estrela do desenvolvimento santista, ressaltada nos discursos das autoridades até hoje: o café.
Apesar de melhorar o acesso, a Calçada do Lorena tinha seu ponto de partida e chegada em Cubatão, o que não resolvia por completo os transtornos causados pelo transporte de mercadorias por canoas. Pode-se dizer que nessa incômoda conexão, sobretudo para os comerciantes, está a origem do sistema de pedágio na ligação da Baixada Santista com a Capital: os jesuítas, por exemplo, tinham área arrendada no pé da Serra do Cubatão e passaram a cobrar taxas pelo trânsito de mercadorias. Depois, a própria Fazenda Real ocupa o lugar dos jesuítas e mantém as taxações. Estamos falando de finais do século XVIII, inícios do XIX, pois em 1825 tem início a construção da estrada que ligará Cubatão a Santos.
Quanto ao trabalho escravo utilizado no transporte das mercadorias e nas melhorias dos caminhos, os números permanecem escondidos em cada pedra assentada na Calçada do Lorena e em corpos soterrados barranco abaixo – não eram raros os deslizamentos e acidentes em um trajeto íngreme, estreito e escorregadio. Ao destacar a movimentação no Vilarejo de Cubatão, o pesquisador santista J. Muniz Jr., no livro ´O negro na história de Santos` (2008), descreve o local como “um aglomerado de cubatas”, ou seja, casas cobertas de folhas, choupana de negros africanos. “Era um reduto de escravos e pouso de tropeiros”.
As condições adversas impunham verdadeiros castigos a escravizadas e escravizados, mas também lhes ofereciam oportunidades para fuga, dificultando a perseguição. É importante ressaltar que, conforme os acessos melhoram, principalmente a partir de 1867, com a inauguração da estrada de ferro, os caminhos tornaram-se mais ‘abertos’ também para a fuga rumo a Santos. Há um episódio citado por pesquisadores, como o próprio J. Muniz Jr., que teria ocorrido já na segunda metade do século XIX: a polícia de São Paulo havia recebido a notícia de uma fuga em massa de fazendas do interior com destino a Santos. Um delegado é enviado para o litoral para pedir ajuda, pois falava-se em mais de 500 fugidos. Como já existia a ligação entre Santos e o vilarejo do Cubatão, o cerco foi preparado para barrar os fugitivos na ponte Piaçaguera. A história contada é que, quando chegaram negras e negros, a autoridade santista teria dito: por essa ponte vocês não passam, mas podem passar por baixo dela. Ainda que soe mais como uma história para exaltar a ‘benevolência’ de abolicionistas, o episódio não deixa de confirmar a força da população negra e seu desejo por liberdade.
Texto: Marcos Augusto Ferreira – produzido a partir da pesquisa ´Memórias Apagadas da Terra da Liberdade`, desenvolvida como parte do Projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras.