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Bonde turístico, em frente à antiga estação de trem. (Foto: Anderson Bianchi/Prefeitura de Santos.

Passeio de bonde pode revelar histórias “apagadas”

Largo da Coroação, com o Chafariz da Coroação, hoje Praça Mauá. (Foto de Militão Augusto de Azevedo, 1865)

A região do Valongo tem fundamental importância na história da vila (1546-1839) e da cidade de Santos. Ali, ao lado do santuário de Santo Antônio do Valongo foi construída a Estação de Trem da São Paulo Railway, ferrovia que ligava Santos e Jundiaí, símbolo do progresso santista na segunda metade do século XIX. Em frente, das ruínas da Casa de Cadeia e Câmara, a arquitetura moderna fez surgir o prédio que abriga o Museu Pelé. É bom ressaltar que até o século XIX, o que se definia como Santos estendia-se do Outeiro de Santa Catarina (local de ´nascimento` da vila, em 1546) até o complexo religioso (erguido em 1640) – leia mais sobre o assunto em ´Gangues` de Santos: valongueiros x quarteleiros.

O prédio da antiga estação ferroviária hoje abriga a Secretaria Municipal de Turismo e Empreendedorismo. Dali, em direção oposta à Serra do Mar, agora parte o bonde turístico (foto maior, de Anderson Bianchi/Prefeitura de Santos) a trilhar ruas do chamado Centro Histórico de Santos. O bonde elétrico nos remete ao início do século XX – os primeiros modelos chegaram em 1909 – e sucede aqueles que eram puxados por animais, desde as últimas décadas do século XIX.

Durante o passeio, avista-se velhos armazéns do cais e antigas construções em ruína. O guia se esforça para levar os passageiros a uma viagem pelo tempo da ‘riqueza do café’ – uma viagem à segunda metade do século XIX. Aponta praças, monumentos, prédios públicos e particulares: o Largo Marquês de Monte Alegre, o Palacete de Mauá, a Rua XV de Novembro, a Bolsa do Café, a Casa da Frontaria Azulejada, entre outros marcos ´bem` escolhidos para sintetizar a história de sucesso da cidade. Há um esforça para convencer os passageiros de que as poucas edificações ‘restauradas’ fazem parte de um grande projeto de recuperação do Centro. No entanto, o abandono está exposto na maioria das fachadas, ou no que restou delas.

A viagem é interessante. Porém, pouco se fala da presença dos negros e negras naquela região e em todos os momentos da história santista: a mão de obra escrava, a presença nos primeiros engenhos, os conhecimentos trazidos da África, o cotidiano de trabalho e manifestações culturais, cotidiano também de fugas e as lutas pela liberdade. A referência à  população negra surge na narrativa apenas quando o objetivo é ressaltar que ‘Santos era contra a escravidão’ e ‘a Abolição aconteceu aqui, espontaneamente, sem precisar de lei’. Frases tão imprecisas que a palavra ‘espontaneamente’ dói nos ouvidos. É como se aos negros e negras não restasse nada além da escravidão e da benevolência das elites. A ‘Abolição’ é tratada como fato isolado, como se nenhuma relação houvesse com escravização, como se não existissem outros cotidianos por trás das belezas destacadas.

Reproduz-se o que parece ter surgido somente a partir da segunda metade do século XIX, na esteira do progresso gerado pela ferrovia, pela chegada da energia elétrica, as exportações do café, a modernização do porto, dos casarões. Uma cidade de braços abertos aos imigrantes, sobretudo os europeus. Afinal, a Europa é a referência de civilização.

Uma narrativa mais realista e abrangente poderia incluir, por exemplo, a informação de que por ali, na região onde hoje está o prédio da Alfândega (Praça da República), já houve um pelourinho, uma pequena senzala, de Misericórdia. Bem próximo, está o Outeiro de Santa Catarina, onde nasceu a Vila e a Cidade, portanto, onde desembarcaram os primeiros africanos escravizados, nas primeiras décadas da colonização, no século XVI.

Muitos outros pontos indicados durante o percurso do bonde podem ter sua história revisitada e recontada. Ao se destacar o prédio da Ordem dos Carmelitas, seria bom não esquecer que as instituições religiosas também mantiveram escravos. “, um dos grandes escravistas de Santos era o Convento de Nossa Senhora do Carmo. Em 1798, o Convento situava-se na rua Direita, fogo de número 62. Havia ali quatro padres e 50 escravos. Já em 1802, ainda como um grande escravista, também na rua Direita, no seu Largo, contava com dois padres e uma escravaria de 49 cativos”, escreve Ricardo Felipe Di Carlo, mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), autor da tese ´Exportar e Abastecer – Santos 1775-1836`, concluída em 2011.

Já no Convento do Valongo, por volta de 1798, eram 12 os escravos, conforme escreve o pesquisador santista J. Muniz Jr. Em 1853, “restavam apenas três: o africano Diogo, o crioulo Benedito e o pardo Dito”, revela o autor de ´O Negro na História de Santos` (2008).

Não eram só os conventos, obviamente. Grandes e pequenos comerciantes possuíam escravos. De acordo com Ricardo Di Carlo, na passagem do século XVIII para o XIX a população cativa em Santos saltou de 1.017 para 2.500, um crescimento de 145,82%. Esse pode ser um bom mote para rever a história que aponta somente riquezas do período cafeeiro, deixando de lado o impacto que o comércio de açúcar causou nos negros e negras: “O crescimento mais significativo foi dado nas três primeiras décadas do século XIX. Ali houve uma clara tendência crescente do aumento de escravos. Desta forma, nota-se um sintoma claro do desenvolvimento econômico da vila, justamente nas décadas de maior ampliação do mercado açucareiro”, aponta o Di Carlo.

Quando o bonde passa perto da Alfândega, outro local ressaltado é o Pantheon dos Andradas. Bem, quando o assunto é exaltar Santos como a , para além da luta pela Independência e de seus préstimos ao Império, o santista José Bonifácio de Andrada e Silva é exaltado pela defesa da Abolição, que já havia libertado os escravos de sua propriedade do Outeirinhos, antes de 1888. As efemérides costumam se basear, também, na representação que José Bonifácio iria apresentar à Assembleia Constituinte de 1823, pois nela estaria registrado quão ávido abolicionista era esse nobre senhor.

Ora, é preciso dizer que a proposta do constituinte sugeria acabar ‘gradualmente’ com os ‘últimos vestígios da escravidão’. Propunha, ainda, uma ‘nação homogênea’, ‘ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil’, inclusive com uma defesa dos ‘casamentos mistos’. Como bem ressalta a historiadora Mary Del Priore, em ´As Vidas de José Bonifácio`, o desejo era “construir na América uma nação de padrão tal qual vira na Europa” (2019, p. 205). A autora observa que, no entanto, a nação já era mestiça. O que se reflete nas palavras de José Bonifácio . Essa ideia se perpetua no imaginário nacional e sustenta o racismo. Miscigenação não é sinônimo de equidade social ou racial.

Quando o bonde passa pela Praça Mauá, o destaque é o imponente prédio do Paço Municipal. Porém, por ali, antigo Largo da Coroação, circularam o imperador D. Pedro II e a imperatriz Thereza Cristina, que vieram a Santos para inaugurar nos anos 1840, o Chafariz da Coroação (em destaque na reprodução da foto de Militão, 1865). De acordo com o pesquisador J. Muniz Jr., naquele evento, além de palanque, houve queima de fogos e uma apresentação de negros com batuques e congadas.

São muitas as histórias a serem reveladas no itinerário do bonde e para além. Pena que o próprio percurso do passeio tenha sido encurtado, deixando de passar em frente ao Outeiro de Santa Catarina, marco do nascimento da Vila de Santos. Após período de abandono, o local atualmente expõe tapumes, indicando obras de restauração. Mesmo assim, quando o bonde trafega a cerca de 800 metros dali, ouve-se uma breve referência: naquela região nasceu Santos. É muito mais que isso.

Texto: Marcos Augusto Ferreira – produzido a partir da pesquisa ´Memórias Apagadas da Terra da Liberdade`, desenvolvida como parte do Projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras.