Africanos e indígenas trabalharam lado a lado
Até o século XVIII, o sistema econômico colonial também utilizou a força dos indígenas escravizados para trabalhar ao lado de negros e negras. “A imagem de substituição ou de ‘transição’ da mão de obra indígena para aquela africana não encontra evidências históricas. Caixas de açúcar que chegavam a Lisboa, entre a segunda metade do século XVI até o início do XVIII, tinham na sua origem uma produção escravista baseada nos trabalhadores indígenas e africanos”, escreve os historiadores Flávio dos Santos Gomes e Lilia Moritz Schwarcz, em texto intitulado ´Indígenas e Africanos`, que compõe o ´Dicionário da Escravidão e Liberdade` (2018 – organizado por ambos).
Os números – afirmam os pesquisadores – variam, mas indígenas e africanos estavam em todos os lugares: nas lavouras canavieiras, nas de alimento, no trato com o gado, no transporte de mercadorias. “Em 1548, o Engenho São Jorge dos Erasmos possuía 130 cativos indígenas e apenas sete africanos”, afirmam.
Importante destacar que a variação numérica foi crescente em relação a negros e negras sequestrados no continente africano. Ressalte-se, ainda que, em junho de 1755, uma lei criada pelo Marquês de Pombal proibiu a escravidão indígena no Grão-Pará e Maranhão. Essa proibição foi estendida aos demais territórios a partir de 1758.
Flávio Gomes e Lilia Schwarcz, assim como outros estudiosos que participam do ´Dicionário da Escravidão e Liberdade`, mostram a complexidade do sistema escravista, a capacidade de adaptação dos colonizadores, traficantes e donos de escravos e a habilidade dos escravizados e perseguidos para readequar métodos de resistência e fuga, desde os primeiros momentos. As populações negras e indígenas, além de trabalharem lado a lado, fizeram suas parcerias e negociações para se ajudarem em fuga, apesar de terem sido utilizados também para lutar contra sua própria gente.
O texto ´Indígenas e Africanos` destaca, por exemplo, a utilização de indígenas para capturar cativos africanos fugidos e atacar quilombos: “Isso ocorreu sobretudo após 1560, quando africanos começaram a chegar em número crescente, e os problemas de fugas, levantes e formações de mocambos tornaram-se crônicos naquela área. Indígenas passariam, então, a ser utilizados nas forças militares, tanto para combater indígenas não aliados quanto para apresar africanos.”
Em outro ensaio publicado no ´Dicionário`, esse intitulado ´Escravidão indígena e o início da escravidão africana`, Stuart B. Schwartz reforça que as relações entre colonizadores e indígenas mudaram, a partir de 1534, com a implantação do sistema de capitanias e a introdução dos engenhos de cana-de-açúcar. Destaca, porém, a crescente utilização dos escravizados africanos: “Muitos dos primeiros africanos, provenientes de sociedades habituadas à pecuária, a sistemas agrícolas complexos, à metalurgia e outras atividades qualificadas, eram treinados como oficiais no processo de fabricação do açúcar e, em 1548, no Engenho São Jorge dos Erasmos, em São Paulo, até mesmo como mestres de açúcar.”
Interessante notar que essa afirmação, para além da questão dos engenhos, explicita aspectos importantes sobre os africanos, contradizendo os estereótipos do negro ‘selvagem’ e ‘sem cultura’ que os colonizadores tanto reforçaram e que, ainda hoje, faz parte do imaginário brasileiro, consolidando comportamentos racistas. Os africanos vinham de sociedades com sistemas complexos e atividades qualificadas. Chegavam cada vez mais e em maiores grupos, à medida que crescia a movimentação de produtos pelo porto: trigo, sal e açúcar, antes do grande acontecimento do café.
Em 1709, São Vicente deixa de ser capitania hereditária e toda a região passa a pertencer à Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, que abrangia extenso território (SP tornou-se capitania autônoma somente em 1720, com a separação Minas Gerais). As populações negras e indígenas começam a ser utilizadas também para exploração de áreas de possíveis reservas auríferas, principalmente em regiões hoje pertencentes a Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais.
No livro ´O Reino, a Colônia e o Poder`, o pesquisador Adelto Gonçalves, por exemplo, cita uma expedição que reuniu 305 canoas, cada uma com cinco tripulantes negros. No total, cerca de três mil homens, “inclusive, muitos indígenas que eram os únicos que sabiam atravessar o sertão e navegar através dos rios cheios de cachoeiras.”
Não foram poucas as expedições partindo em canoas pelo Rio Tietê ou a pé mata adentro, uma aventura perigosa. “Do Tietê, as canoas passavam pelos rios Pardo, Coxim, Taquari e Paraguai, sempre tentando ultrapassar as corredeiras que seriam mais de uma centena. Muitas canoas viravam e seus tripulantes desapareciam. Outras pessoas morreram em razão das sezões ou de ataques de onças e outros animais selvagens. Sem contar os índios paiaguás e guaicurus, que atacavam de surpresa e conheciam o terreno como ninguém”, escreve Gonçalves.
Texto: Marcos Augusto Ferreira – produzido a partir da pesquisa ´Memórias Apagadas da Terra da Liberdade`, desenvolvida como parte do Projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras.